176 ANOS FORMANDO MÚSICOS DE EXCELÊNCIA

Música erudita e popular: duas tradições em harmonia na Escola de Música

A música erudita e a música popular têm raízes históricas distintas. Uma possui uma longa tradição formalizada, muitas vezes ligada a compositores clássicos e à tradição acadêmica. A outra geralmente está mais associada às raízes folclóricas, à música de rua e às tradições transmitidas oralmente. Embora a relação entre ambas a primeira vista possa ser pensada como de oposição, não há como ignorar a complexidade das interconexões históricas e estilísticas que não raramente geram sinergias e entrelaçamentos surpreendentes.

  Nadeja Costa
 

Compositores clássicos frequentemente incorporaram elementos de música popular em suas obras. Basta pensar, por exemplo, nas Danças Húngaras, um conjunto de 21 peças onde Johannes Brahms, um dos mais importantes representantes do romantismo musical europeu, captura o ritmo, a energia e a alegria das csárdás e verbunkos, danças folclóricas húngaras de origem cigana, com seus andamentos variados, ritmos animados e passagens virtuosísticas. A história é repleta de exemplos semelhantes. E, em tempos mais recentes, a fusão entre os dois estilos segue inspirando músicos comprometidos com a novidade e a experimentação.

Não à toa, na efervescência cultural da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a riqueza da música popular é celebrada como um alicerce crucial na formação dos discentes. Ao andar de mãos dadas com a erudição da música clássica, ela assume uma relevância ímpar, enriquecendo repertórios e viabilizando aos nossos estudantes um vasto leque de aprendizados que ampliam suas habilidades e percepções como futuros músicos e profissionais da área.

Sôdade Brasilis

Neste sentido, o projeto de extensão Sôdade Brasilis, oficina musical de choro que faz uma ponte entre os saberes acadêmicos e os saberes tradicionais, é uma emblemática concretização desta interseção estilística no âmbito da EM/UFRJ. Coordenado desde 2008 pelo professor Sergio Alvares (foto), atual coordenador do Curso de Licenciatura em Música lotado no Departamento de Musicologia e Educação da EM/UFRJ, o projeto foi construído a partir das reminiscências musicais da Belle Époque carioca presentes nas práticas musicais urbanas contemporâneas. Integrando ensino, pesquisa e extensão, seu foco é a música instrumental oriunda dos gêneros em voga entre as últimas décadas do século XIX e o início do século XX, como a valsa, a polca, o tango, o maxixe, o samba e, claro, o choro, estilo que segundo o docente se configura como um importante elo musical entre o Brasil e o exterior.

“O choro representa a transposição da música global para a música brasileira. Em meados do século XIX, nós temos essa nacionalização da música através do choro, que nasce como uma forma de interpretação das músicas relacionadas às danças de salão como a polca, a valsa, a schottisch, a habanera, entre outros gêneros”, explica o professor.

Segundo Sergio, uma importante característica do projeto que, em 2017, recebeu através do Proart (Programa de Apoio às Artes da UFRJ) o status de Grupo Artístico de Representação Institucional, é impulsionar diálogos e interações extramuros aos campi universitários através da interlocução com o saber tradicional produzido pelos mestres dos saberes populares.

“Buscamos, por exemplo, auxiliar na questão do reconhecimento artístico dos Velhos Chorões, um importante grupo de mestres de mais de oitenta anos, que de alguma forma acabaram ofuscados por conta das mudanças do mercado da música. Paralelamente, a interação deles com nossos alunos é um importante meio de aquisição e transmissão de conhecimento”, comenta.

A integração de tais mestres seniores com nossos alunos representa a perenidade de uma rica herança musical da Escola de Música, em especial o vasto histórico de diálogo entre o erudito e o popular. Basta lembrar de um compositor de verve inesgotável, arranjador pioneiro e mestre do improviso que teve no então Instituto Nacional de Música — encarnação antiga da EM/UFRJ — sua única escola formal: Pixinguinha. De acordo com Sergio Alvares, vários dos mestres dos saberes populares com os quais nossos atuais alunos têm a chance de interagir conviveram diretamente com esse músico ilustre que foi um dos criadores do que hoje reconhecemos como música brasileira.

“Décadas atrás, muitos desses mestres seniores tiveram oportunidade de conviver com Pixinguinha, e outros importantes nomes da velha guarda. Isso representa uma continuidade nessa transmissão do saber tradicional musical brasileiro”, diz o docente.

Musicalidade Abrangente

O Sôdade Brasilis é um exemplo que deixa claro que a relação entre a música erudita e a  música popular é de complementaridade e não de oposição. Na mesma toada, existe na EM/UFRJ um projeto que busca superar este tipo de fragmentação com o objetivo de promover a reintegração do conhecimento musical. Trata-se do Musicalidade Abrangente, também sob a coordenação de Sergio Alvares, que está inserido no Programa de Pós-graduação em Música (PPGM).

No âmbito da educação musical, tanto na educação básica quanto no ensino superior, é comum que o conhecimento seja fragmentado para possibilitar a especialização em áreas específicas. Mas, de acordo com Sergio, essa fragmentação de saberes com fins pedagógicos é algo que não se observa naturalmente na esfera do conhecimento tradicional.

“Os saberes primevos, primordiais, primitivos trazem a natureza do saber unificado. Depois nós vamos fragmentando para que possamos especializar e aprimorar em determinadas áreas mas sempre sem perder o intuito dessa reunificação para que possamos obter uma visão global, uma visão total, gestáltica desse conhecimento musical”, analisa.

Ao se apoiar nessa ideia de conhecimento unificado transmitido pelos saberes primitivos, o projeto Musicalidade Abrangente busca reunificar o saber musical que foi fragmentado. Também neste sentido, Sergio menciona os estudos do professor belga Jos Wuytack, que por sua vez tem realizado uma carreira internacional intensa como divulgador de uma pedagogia musical ativa e criativa, baseada nas ideias de Carl Orff, de quem foi discípulo e amigo.

“O professor Jos desenvolve uma proposta de educação musical de transmissão desse conhecimento baseado justamente na totalidade que a música envolve. Ao acoplar esses conceitos do professor Jos da pedagogia musical ativa com os conceitos do saber unificado da musicalidade abrangente, nós propomos uma abordagem e interação com os espaços da educação básica da rede pública com a universidade. Envolvendo o projeto de extensão Sôdade Brasilis, cria-se a triangulação com os mestres dos saberes populares e as formas de transmissão desse saber unificado”, explica.

Segundo ele, essa abordagem permite a transposição das barreiras que eventualmente existem entre a música erudita e a música popular, bem como entre a música acadêmica e a música tradicional. A lição que fica é que, seja erudita ou popular, a música, em sua diversidade e complexidade, transcende rótulos. Embora enraizados em histórias e abordagens distintas, os diferentes estilos encontram pontos de convergência que evidenciam uma complementaridade fundamental. E projetos como o Sôdade Brasilis e o Musicalidade Abrangente, ao celebrarem a pluralidade, demonstram de maneira concreta o potencial dessa harmonização para uma compreensão mais profunda e completa da arte sonora.

É possível saber mais sobre o projeto Sôdade Brasilis através de sua página no Youtube: www.youtube.com/SodadeBrasilis.

Sergio Luis de Almeida Alvares

Doutor (Ph.D.) em Educação Musical pela University of Miami (1998); Mestre em Performance e Composição em Jazz pela New York University (1995); Diplomado em Performance e Arranjo pela Berklee College of Music (1993); e Licenciado em Educação Artística, com Habilitação em Música, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO (1987). Professor Titular da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em Música, Coordenador dos projetos de pesquisa Musicalidade Abrangente e de extensão Sôdade Brasilis. Experiência administrativa em chefia de departamento, coordenação de área de pós-graduação e curso de licenciatura e na direção-regional da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM). Instrumentista de Sopro (sax e flauta), Compositor e Arranjador na linha do Choro e Jazz; e Educador Musical com formação Orff, Kodaly e Suzuki com magistério na educação infantil, básica, superior e especializada no Brasil, Estados Unidos, França e Portugal. Estágios Pós-Doutorais: CAPES / Fulbright Scholar na West Virginia University, University of California at Riverside e Florida State University (2012-2013); e Formação na Associação Wuytack de Pedagogia Musical (2014-2017), em Portugal.

 

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