Professor da EM compõe primeiro concerto brasileiro para órgão

Embora seja longa a lista dos nossos compositores que compuseram para órgão e inclua nomes como Alberto Nepomuceno, Ângelo Camin, Fúrio Franceschinni, Henrique Oswald e Amaral Vieira, a quase totalidade dessas peças se destina a instrumento solo. O fato sempre incomodou o professor Alexandre Rachid que, em suas pesquisas, jamais encontrou uma obra brasileira escrita para órgão e orquestra. Nossa produção, ainda que pequena se comparada a outras tradições musicais, inclui peças expressivas e de grande valor. Nenhuma, porém, voltada para a formação.

 

Uma lacuna que, felizmente, acaba de ser sanada. Responsável pelo ensino do instrumento na Escola de Música (EM), Rachid dedicou a pesquisa de doutorado à composição do primeiro concerto brasileiro para órgão. A peça, que foi um dos destaques da abertura das comemorações do 166° Aniversário da Escola, estreou no dia 11 de agosto no Salão Leopoldo Miguez. Na ocasião, o maestro Roberto Duarte regeu a Orquestra Sinfônica da UFRJ (OSUFRJ). O próprio autor atuou como solista. 

 

O site da EM conversou com o professor para conhecer um pouco do processo de criação e sobre as características musicais do concerto. A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir, assim como a gravação, realizada ao vivo, durante a estreia.

 

Professor, conte um pouco sobre sua formação.

 

Entrei na EM em março de 1972, aos dez anos de idade, no curso técnico de piano, na classe da professora Anna Carolina Pereira da Silva. Naquela época o curso técnico era muito longo, com quase dez anos. Havia sido iniciado no piano pelo maestro, pianista e arranjador Bernardino Soares Vivas. Em 1982 ingressei no bacharelado em órgão. Estudei com professor Mário Gazanego e, após a sua morte, com Gertrud Mersiovsky. Colei grau em 1988. E depois?
Fiz, de 1988 a 1992, o mestrado em órgão na área de Práticas Interpretativas com trabalho voltado, sob a orientação de Gertrud Mersiovsky, para os aspectos composicionais e de registração da Messe de la Pentecôte, obra de Olivier Messiaen. De 1995 até 1998 cursei o bacharelado em composição, na classe da professora Marisa Rezende. Paralelamente concluí, em 1999, a licenciatura em educação musical no Conservatório Brasileiro de Música. Por último, cursei o doutorado em composição na UNIRIO, na área de Linguagem e Estruturação Musical, sob orientação de Ricardo Tacuchian, concluído em janeiro de 2012.
A docência começou em 1993, quando fiz concurso para a Escola de Música do Espírito Santo (EMES), onde lecionei durante um ano. Em 1995 fui o primeiro professor substituto de órgão da EM. Em 2004 novamente fui aprovado para professor substituto e, desde 2005, respondo pela cadeira de órgão na instituição.

 

Como nasceu o interesse pelo órgão?
Desde criança meu pai, que era pianista e organista, me colcocava para tocar em casamentos, bodas e missas. Não sabia, porém, tocar adequadamente o instrumento. Me limitava a executar no teclado e, com o pé esquerdo, os baixos. Não sabia usar ainda os registros e nem tinha independência da pedaleira. Aos poucos surgiu meu fascínio pelo órgão e por suas possibilidades. Como surgiu a ideia de fazer um concerto para órgão?
Nenhum dos nossos grandes compositores havia composto para órgão e orquestra. Talvez devido à dificuldade de se compatibilizar a orquestração com os registros do órgão, além dos desafios de um instrumento muito técnico: o organista, por exemplo, tem que ler ao mesmo tempo três claves. Some-se a sisso o fato de que as nossas principais salas de concerto não dispõem de órgão

 

 Foto: Ana Liao
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 Roberto Duarte e Rachid após a execução do concerto.
E como foi o processo de criação?
Foquei meu doutorado na composição deste gênero inédito no Brasil, a partir da pesquisa intitulada "Interação entre Orquestração e Registração durante a Elaboração de um Concerto para Órgão e Orquestra". O processo de criação foi todo baseado nas minhas improvisações organísticas. Surgiam temas e eu aproveitava as ideias musicais e dáva-lhes uma roupagem tímbrica (registração), imaginando o contraponto orquestral.
A imaginação musical é muito importante neste momento. O processo de criação passa por fases de autoconhecimento e de superação, que um instrumentista comum desconhece. É um processo que não se esgota e continua mesmo depois da estreia da obra, seu verdadeiro nascimento. Sinto-me pai das minhas peças, elas são frutos de enorme esforço intelectual e de conhecimento de orquestração, registração, contraponto e tonalidades. Além, claro, de muita intuição e muita imaginação. Fale um pouco sobre os aspectos musicais do concerto
São três movimentos. O primeiro, adota a forma sonata, com a apresentação de dois temas distintos, alternados entre órgão e orquestra. Depois surge o desenvolvimento individual de cada deles e, por fim, a justaposição e contraponto entre ambos. Segue a reexposição do tema inicial e a conclusão com escala de tons inteiros. Dos três movimentos é o que apresenta maior equilíbrio entre órgão e orquestra.
  
 
quote Sinto-me pai das minhas peças, elas são frutos de enorme esforço intelectual e de conhecimento de orquestração, registração, contraponto e tonalidades.
Além de muita intuição e muita imaginação.quotefim
O segundo, foi elaborado para pedaleira e orquestra na forma rondó. O órgão começa como se fazendo parte da orquestra, dobrando com os contrabaixos e violas. O tema é exposto nos violoncelos. Aos poucos vai se difundindo pela orquestra até chegar à pedaleira solista. Há, também, uma segunda ideia musical que alterna metais e percussão com a pedaleira. Termina diluindo orquestralmente o "tutti orquestral". Em minha opinião, é o de maior personalidade temática.
O último adota um único tema extremamente romântico (monotemático), composto por cabeça, corpo e cauda. O tema é trabalhado inicialmente no solo de órgão, depois se alternado entre órgão e orquestra, seguindo-se um "fugato orquestral" com o tema integral, após o qual segue uma rica seção baseada na alternância de manuais com os metais na cabeça do tema, seguido de nova seção em ritmo binário, acompanhada de orquestração diferenciada onde se faz uso inclusive de castanholas. Chega-se logo após à cadência baseada na cabeça do tema passando pelos diversos tipos de pleno de linguetas entre os manuais (Grand Jeux). Ocorre uma reexposição com o tema binário vindo antes do diálogo entre manuais e metais (simetria invertida), chegando a reexposição do tema com textura densa com cânone temático entre as seções graves da orquestra com as agudas, concluindo com uma coda onde se faz alusão ao segundo tema do primeiro movimento.

Uma última pergunta, como avalia o cenário da música para órgão no Brasil?
Com grande esperança! Embora seja um instrumento encontrado principalmente em igrejas, e de manutenção cara, o interesse sempre existiu e vai sempre existir. A beleza tímbrica e sonora do órgão atrai estudantes. O número de peças nacionais vem crescendo muito. Ministro cursos de extensão, com o propósito de estimular a composição para órgão, e vejo uma grande curiosidade pelos seus recursos.