176 ANOS FORMANDO MÚSICOS DE EXCELÊNCIA

Uma experiência inovadora de inclusão acadêmica

Andrea Adour é professora do Departamento Vocal de Música da UFRJ. É graduada em Desenho Industrial pela Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RIO. O Mestrado em Música/Canto foi realizado na mesma Escola, onde hoje desenvolve seu trabalho, e o Doutorado em Educação, na Linha de Pesquisa Movimentos Sociais e Ações Afirmativas, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG-. Atualmente, junto ao trabalho de docência e Coordenação do seu departamento ocupa a função de Vice- Diretora da Escola de Música.

 

A UFRJ tem tido a preocupação de implementar políticas que viabilizem a permanência e melhor desempenho acadêmico de estudantes com necessidades especiais. Em consonância ao resultado desta preocupação, um discente cego e autista desempenhou o papel do personagem principal em uma ópera ? Saulo Laucas, aluno de sua classe do Curso de Bacharelado em Canto. Quais recursos didáticos você lança mão ou qual o método por você utilizado para obter tão elevado nível de aprendizado e inclusão?

 

 Foto: André Garcez
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quote Eu só posso realizar um trabalho de inclusão acadêmica como este, porque sou docente de uma universidade pública federal. E como tal, tenho por amparo a autonomia da mesma para desenvolver pesquisas e métodos. E é também, porque Saulo Laucas é aluno de uma universidade pública federal, a UFRJ, que ele pôde ter a experiência de assumir o papel principal em uma ópera.quotefim

Inicialmente, posso dizer que a metodologia foi sendo construída ao longo do caminho. Existe, contudo, uma experiência e uma decisão pessoal que acredito terem sido decisivas para que esta metodologia pudesse ser construída: minha iniciação musical foi realizada por uma senhora que me transmitia seu conhecimento junto à crianças que possuíam diferentes necessidades especiais. Então, eram minhas amigas aquelas crianças, junto as quais eu aprendia e brincava, e como tais eu as ajudava sempre que podia e se fazia necessário. Com o tempo e na condição de docente, entendi que subjacente ao ato de ajudá-las, eu havia me apropriado de um truísmo: todos os alunos possuem uma necessidade de aprendizado que é sempre especial. Por conseqüência, acredito que todos os docentes, necessariamente, trabalham com as diferenças. Quanto à decisão pessoal, este aluno, Saulo Laucas, foi aprovado no ENEM e no Teste de Habilidade Específica – THE-. Depois de matriculado, a Escola de Música, sem muito saber como dar a ele a formação acadêmica devida, recorreu ao Conselho de Ensino de Graduação de nossa Universidade – CEG-. Naturalmente, este Conselho trouxe à lembrança que ele era nosso aluno e, sendo assim, era a Escola de Música a responsável por encontrar caminhos para que ele pudesse receber a mesma formação acadêmica que recebe qualquer outro aluno da UFRJ. Na reunião do departamento para tratar a questão, face à minha experiência pessoal anterior, considerei que receber Saulo seria para mim um ato muito natural, assim como, para mim era claro que a inclusão não diz respeito a inserir alunos em diferentes espaços e, sim, de gerar aprendizado. Por isso, me posicionei dizendo: quero aprender como vamos construir essa inclusão acadêmica. E foi assim que Saulo se tornou aluno de minha classe. Na construção de uma metodologia para sua formação acadêmica, o primeiro obstáculo encontrado foi me dar conta de a Escola de Música não possuir partituras em Braille. E sendo assim, como poderia fazer para que ele, cego, pudesse efetuar a leitura? O outro obstáculo se fez pelo fato, absolutamente natural, de este aluno ingressar no bacharelado com a voz distante da impostação lírica. Então, como fazer para que ele se apropriasse da cor da voz lírica de um tenor? Ainda no primeiro período, dois outros obstáculos, diretamente relacionados à interpretação musical, foram encontrados. Explico: musicalmente, algumas palavras contêm mais afeto do que outras. Isto é, existem aquelas que dão a carga de sofrimento, de raiva, de paixão etc. Mas, por ser autista, ele não conseguia conciliar o afeto que fundamenta o texto musical às expressões faciais que reproduzem os diferentes sentimentos. Entrelaçado a este obstáculo, um outro era produzido: por ser cego, não havia como ele fazer a correção imediata das expressões faciais da mesma maneira que os alunos, não portadores de deficiência visual, fazem ao olhar para mim no transcorrer da aula. E foi o convívio com estes alunos não portadores de deficiência, mas que, como todos nós, possuem limitações para aprender determinados conteúdos escolares, que possibilitou a construção de uma certeza: situações didáticas impostas de maneira uniforme a todos os alunos, nem sempre são adequadas para todos eles. Com esta certeza aliada à observação anteriormente feita de ser Saulo dotado de ouvido absoluto e dono de uma concentração singular, que suponho ter por origem o autismo, decidi pela utilização de um recurso didático desenvolvido no respeito às diferenças e com as diferenças: passei a ler para ele as notas musicais que juntas compõem a melodia e a harmonia das partituras. Esse procedimento se fez bastante para que ele passasse a construir internamente a leitura das partituras e, com isso, dominar as proporções das figuras musicais, das alturas das notas, a ter perfeita noção dos andamentos e realizar a leitura. Pronto! estava resolvida a questão da leitura das partituras. Depois, no decorrer das aulas, entendi que os exemplos dados por mim não seriam suficientes para fazer com que o Saulo entendesse o mecanismo que faria com que se apropriasse da cor da voz lírica de um tenor, uma vez que o som emitido por meus exemplos era a de uma soprano que sou. Para superar aquele obstáculo recorri à autonomia que a Universidade, da qual faço parte, tem garantida pela Constituição do Brasil. Ou seja, se a UFRJ possui a faculdade de governar por si mesma, na qualidade de uma de suas docentes, possuía a liberdade de decidir por uma outra metodologia e outra norma, no espaço de tempo por mim considerado necessário. Assim, as aulas deixaram de ser individuais e passaram a ser em dupla. E durante todo primeiro período letivo dos estudos do Saulo, elas foram ministradas, a um só tempo, para ele e um outro tenor, para que ele entendesse o tamanho do espaço no trato vocal, da ressonância, do relaxamento necessário, do abaixamento da laringe e para que um ajudasse ao outro na construção desse mecanismo. E deu certo. Com o tempo, percebi que, em determinadas escalas, Saulo tendia a fazê-las mais rápidas do que o normal. Então, me dei conta de que tendo uma voz ágil, podia cantar oratórios e passei a desenvolver coloraturas com ele. E, de fato, ele as desenvolveu com muita rapidez e fez sua primeira audição para o Magnificat de Carl Philipp Emmanuel Bach, encantando o regente, Tobias Volkmann. Eu ainda penso que uma carreira fundada na interpretação de oratórios e cantatas será um bom lugar para ele. Quanto ao entendimento dos afetos, o quadro de autismo dele faz com que, muitas vezes, ele não consiga entender o significado do que está sendo dito. Acontece que um cantor tem que saber expressar o texto que interpreta, para que possa trazer o ouvinte para o contexto emocional da música. Inicialmente, eu não sabia como fazer para vencer esta dificuldade. Comecei por interpretar os textos musicais de diferentes maneiras. Isto é, colocava a carga de sentimento em trechos diferentes a cada vez que cantava e perguntava, qual fora a interpretação que a ele mais emocionara. Após a escolha que sempre coincidia com a interpretação correta, eu dizia que ele havia se emocionado mais com aquela interpretação, porque eu havia colocado nas palavras às quais os afetos se referiam o apoio maior em determinadas sílabas, um pouco mais de ar em algumas, menos em outras e que havia estendido ou diminuído a extensão do som noutras. Junto a isso, pedi a ele que, quando se emocionasse ouvindo uma música, me telefonasse e me dissesse a música que havia escutado. No desenvolver deste processo, fiz com ele, muitas vezes, vocalize no Skype, até que o mecanismo da colocação do afeto com altura, ritmo e emoção pudesse ser executado. A superação da dificuldade de conciliar as expressões faciais com o significado dos diferentes sentimentos transmitidos pelas peças musicais, foi resolvida da seguinte maneira: parti do princípio que não se tem que morrer para dizer da dor que a morte causa e nem estar apaixonado para que o cantar de todos nós possa ser reproduzido na expressão facial. Desta forma, passei a construir imagens paralelas, através de experiências diárias do Saulo. Por exemplo, para que seu rosto refletisse a expressão facial da raiva, eu dizia: Saulo, aqui a sua expressão facial deve ser a mesma que você faz, quando alguém pega a sua batata frita (ele adora batatas fritas).

 

Considerando que Saulo não enxerga e, portanto, não podia se movimentar no palco e nem ver os sinais do regente da orquestra para que fizesse suas entradas, a que recursos recorreram para superar essa diferença que o Saulo traz consigo?


A direção cênica da ópera foi de responsabilidade do Professor José Henrique Moreira, docente da nossa Escola de Comunicação. De forma magistral, ele resolveu este grande obstáculo: transformou todos os personagens em títeres e com este recurso cênico tornou possível a inclusão do Saulo no espetáculo. A outra grande dificuldade a que você se referiu foi também resolvida de forma brilhante pelo Regente da Orquestra, Professor Jésus Figueiredo, e por Priscila Bomfim que, além de cumprir a exigência do Recital de Formatura em Regência, também respondeu pela Direção Musical. Em alguns trechos, em que os regentes tinham que dar as entradas, eles inverteram o processo e as entradas foram dadas pelo Saulo. Em outros trechos as entradas foram combinadas. Foi assim que Saulo recebeu a formação acadêmica que recebe qualquer outro aluno da UFRJ.

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